Pense na determinação do ser humano, e em tudo o que é possível realizar quando sua sobrevivência está em risco. Leonid Ivanovich Rogozov, o homem, a lenda, o mito. Fiquei impressionado a ler sua história, e senti orgulho, como estudante de medicina e como ser humano, de que tenha existido alguém com a capacidade e modestia de nos mostrar o que é querer viver.
O navio Ob, com seus 6 membros, partia de Leningrado em direção à Antartica em 5 de novembro de 1960. A missão era construir uma nova base polar de pesquisas e passar pelo terrível inverno antártico. Após 9 semanas, a base Novolazarevskaya estava pronta e a tempo para a chegada do inverno. O mar congelara a sua volta e o navio já havia partido e não voltaria tão cedo. Contato com o mundo externo não era mais possível. Através do longo inverno os 12 habitantes de Novolazarevskaya dependeriam somente de si. Um dos membros da expedição era o jovem cirurgião de 27 anos Leonid Ivanovich Rogozov.
29 de Abril de 1961
Após várias semanas se sentido mal, Rogozov logo percebeu em si sinais de fraqueza, mal-estar, náusea e, posteriormente, dor em região superior de seu abdome que mudou, depois, para o quadrante inferior direito. Sua temperatura subiu para 37,5 ºC. Rogozov escreveu em seu diário:
"Aparentemente estou com apendicite. Estou disfarçando, até sorrio. Porque preocupar meus amigos? Quem poderia ajudar?"
Como cirurgião, Rogozov não teve dificuldades para diagnosticar apendicite aguda. Porém, por ironia do destino, ele sabia que só sobreviveria se fosse submetido a operação. Era o único médico no local, e contato com o mundo externo estava fora de questão uma vez que o inverno já se instalara sobre a base.
30 de Abril de 1961
Todos os tratamentos paliativos foram usados (antibióticos, resfriamento da área), mas seu estado continua piorando: sua temperatura subiu, e os vômitos ficaram mais freqüentes.
"Eu não consegui dormir ontem a noite. Dói demais. Continua sem sinais de perfuração iminente, mas um sentimento opressivo de que algo ruim está por vir paira sobre mim... É isso...Eu tenho que pensar na unica possibilidade de sair dessa: operar em mim...é praticamente impossível...mas eu não posso simplesmente cruzar os braços e desistir."
"18:30. Eu nunca me senti tão mal em minha vida. O prédio está tremendo como um pequeno brinquedo na tempestade. O pessoal já descobriu. Eles continuam tentando me acalmar. Estou chateado comigo - estraguei o feriado de todos. Agora estão todos correndo por aí, preparando a autoclave. Temos de esterilizar a cama, pois vamos operar."
"20:30. Estou piorando. Falei para o pessoal. Agora temos de começar a tirar tudo que não precisamos da sala."
Preparação para a operação
Seguindo as instruções de Rogozov, os membros da equipe improvisaram uma sala de cirurgia. Retiraram tudo da sala de Rogozov deixando apenas sua cama, duas mesas e uma luminária. Os aerologistas Fedor Kabot e Robert Pyzhov inundaram a sala com luz ultravioleta e esterilizaram a cama e os instrumentos. Além de Rogozov, o metereologista Alexandr Artemev, o mecanico Zinovy Teplinsky, e diretor da estação, Vladislav Gerbovich, foram submetidos à lavação anti-séptica. Rogozov explicou como a operação iria proceder e lhes designou tarefas: Artemev deveria lhe passar os instrumentos; Teplinsky seguraria o espelho e ajustaria a luz; Gerbovich estaria na reserva caso alguém passasse mal. No caso de Rogozov perder a consciência, ele instruiu sua equipe de como injetar-lhe drogas com uma seringa que havia preparado e de como realizar ventilação artificial. Então ele lavou as mãos de Artemev e Teplinsky e colocou-lhes luvas cirurgicas. Quando tudo estava preparado, Rogozov se lavou e posicionou-se. Ele escolheu uma posição semi-inclinada, limpou a área a ser aberta e, antecipando a necessidade que teria do senso tátil para se guiar, decidiu trabalhar sem luvas.
A Operação
Começou as 2:00 local. Rogozov infiltrou as camadas da parede abdominal com 20ml de 0.5% de procaína, usando diversas injeções. Após 15 minutos ele fez uma incisão de 10-12 cm. A visibilidade na profundeza da cavidade não era ideal, em alguns momentos ele teve de elevar a cabeça para obter uma vista melhor, ou usar o espelho, nas a maior parte do trabalho foi feito somente por toque. Depois de 30-40 minutos, Rogozov começou a fazer pequenas pausas devido a fraqueza geral e sensação de vertigem. Finalmente ele removeu o apêndice severamente afetado. Ele aplicou antibióticos na cavidade abdominal e fechou a incisão. A operação levou cerca de 1 hora e 45 minutos. Em certo momento, Gerbovich chamou Yuri Vereshchagin para fotografar o evento. Gerbovich escreveu em seu diário aquela noite.
"Quando Rogozov fez a incisão e estava manipulando seus órgãos internos, assim que removeu o apêndice seu intestino roncou. Isso foi absolutamente nada agradável para nós, fez com que quisesse desviar o olhar mas mantive minha cabeça e olhar firmes. Rogozov manteve-se calmo e focado no trabalho, porém suava muito em sua testa e freqüentemente pedia à Teplinsky para seca-la."
Após a operação
Terminado, Rogozov mostrou a seus assistentes como lavar e guardar os instrumentos e outros materiais. Então tomou pílulas para dormir e descansou. No outro dia sua temperatura era de 38,1 ºC, ele descreveu sua condição como "moderadamente ruim", mas no geral se sentia melhor. Ele continuou a tomar antibióticos. Depois de quatro dias suas funções digestivas voltaram ao normal e os sinais de peritonite local desapareceram. Cinco dias depois sua temperatura era normal e ele removeu as suturas. Dentro de duas semanas já podia realizar suas tarefas normalmente e voltou a escrever em seu diário."
8 de Maio de 1961
"Não me permiti em momento algum a pensar em outro coisa se não minha tarefa a realizar. Cerrei os dentes e fui frio. No caso de perder a consciência eu dei uma seringa a Sasha Artemev e mostrei-lhe como me dar uma injeção. Expliquei a Zinovy Teplinsky como segurar o espelho. Meus pobres assistentes! No ultimo minuto olhei para eles: eles lá em seus aventais cirúrgicos brancos, mais brancos que eles mesmos. Eu também estava com medo. Mas quando peguei a agulha com novocaina e me dei a primeira injeção, de alguma forma eu entrei em modo automático, e desse ponto em diante não percebi nada mais."
"Trabalhei sem luvas. Era difícil de enxergar. O espelho ajudou, mas também atrapalhou - afinal, mostrava tudo ao contrário. Trabalhei mais pelo toque. O sangramento foi bastante grande, mas eu mantive a calma. Ao abrir o peritônio, eu atingi o ceco e tive de suturá-lo. De repente passou pela minha cabeça: há mais lesões por aqui e eu não percebi...Fui ficando cada vez mais fraco, minha cabeça começou a rodar. A cada 4-5 minutos eu descansava por 20-25 segundos. Finalmente, aqui está o apêndice maldito. Com horror eu percebi a mancha negra em sua base. Significava que apenas um dia a mais ele teria se rompido e ..."
"No pior momento da remoção do apêndice meu coração disparou e eu parei e pensei: minhas mãos parecem borracha. Bom, eu pensei, isso não vai terminar bem. E tudo que me restou foi remover o apêndice..."
"E então eu percebi que, praticamente, eu já estava a salvo."
Deixando a Antártica
Mais de um ano depois a equipe deixou Novolazarevskaya e em 29 de Maio de 1962 seu navio atracava no porto de Leningrado. No dia seguinte Rogozov retornava a seu trabalho na clínica. Ele trabalhou e lecionou no Departamento de Cirurgia Geral do Primeiro Instituto Médico de Leningrado. Ele nunca mais voltou a Antartica e morreu em São Petesburgo, anterior Leningrado, em 21 de setembro de 2000.
O limite da capacidade humana
A auto-operação de Rogozov foi provavelmente o primeiro ato ocorrido fora de uma estrutura hospitalar em um lugar deserto sem nenhuma possibilidade de ajuda externa, e sem a presença de qualquer outro profissional médico a sua volta. Permanece como um exemplo de determinação e da força de vontade para viver do ser humano. Em seus últimos anos Rogozov rejeitou todas as glórias de seu feito. Quando perguntado sobre o ocorrido ele simplesmente respondia com um sorriso no rosto: "Um trabalho como outro qualquer, uma vida como outra qualquer"
Artigo publicado no British Medical Journal: "Auto-appendectomy in the Antarctic: case report" -Vladislav Rogozov, Neil Bermel.
http://www.bmj.com/cgi/content/full/339/dec15_1/b4965
PS: Vladislav Rogozov é filho de Leonid Rogozov.
6 comentários:
Comprido, mas valeu a pena. Parabéns pelo post. Lida historia.
Realmente muito bom este post. É uma lição de vida a muita gente que tem medo de começar qualquer desafio.
Fiquei relamente pasmo com esse post
força de vontade enorme a desse cara!
parabens pelo post!!
Nossa, incrível a história.
O Post tá grande o suficiente, mas tá excelente!
Linda e emocionante história..ninguém ainda fez filme?
Uow...
que história!
E que coragem do médico tbm!
^^
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